Curso de Gestão Territorial chega à sua segunda edição com debate sobre direitos, história e identidade beiradeira
Banho de rio, festejos, quebra de castanha e liberdade... As palavras preenchem rapidamente a lousa, ditadas por jovens beiradeiros da comunidade Morro do Anfrísio, na Resex Riozinho do Anfrísio, no Pará. Elas são respostas à pergunta: o que você vê de bom no beiradão? A atividade, que trazia uma reflexão sobre qualidade de vida e possibilidades de monitoramento, faz parte da mais recente etapa do Curso de Gestão Territorial, cujo segundo módulo acaba de ser realizado nas três Resex da Terra do Meio, ao longo do mês de julho.
O módulo teve duração de um mês, e se seguiu a uma primeira formação, que aconteceu em janeiro deste ano. Neste último, cerca de 60 estudantes das Resex Riozinho do Anfrísio, Rio Iriri e Rio Xingu, bem como da Esec Terra do Meio, outra Unidade de Conservação da região, participaram das aulas, que ocorreram nas localidades Morro do Anfrísio, São Francisco e Gabiroto.
O Curso de Gestão Territorial foi primeiramente realizado entre 2011 e 2016, abarcando diversas etapas. Então promovido pelo Instituto Socioambiental (ISA) e Fundação Viver Produzir e Preservar (FVPP), com apoio da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o ciclo formativo tinha como objetivo formar pessoas de referência nas Resex, visando o desenvolvimento de autonomia e protagonismo em questões socioambientais presentes na região.
Ao longo de seus módulos, a primeira edição do curso formou cerca de 40 estudantes, entre jovens e adultos do Xingu, Iriri e Riozinho do Anfrísio. Dos bancos do curso, saíram assessores e lideranças das associações de moradores das Resex.
Herculano Filho, mais conhecido como Louro, é um deles. Participante da primeira edição do ciclo formativo, ele retornou neste ano de 2022 – dessa vez, como professor. “Eu fico muito honrado,mas sempre estou também aprendendo, afirma. Para Louro, um dos grandes legados do curso é a valorização da identidade beiradeira e o estabelecimento de pontes, visualizando o território de modo diferente, com ferramentas como o GPS e o conhecimento de leis. “Por que aprender o que já sabemos? É que não basta saber se não divulgar para os outros”, explica.
Há também egressos do Curso de Gestão que se tornaram professores das escolas que se multiplicam pelo território. Os numerosos estabelecimentos de ensino são, aliás, um indicativo de que as Resex que receberam as primeiras edições do curso vivem hoje uma realidade bem diferente daquela encontrada em 2011 em termos de acesso a direitos e cidadania. Dentre as conquistas das comunidades beiradeiras, estão 21 escolas em funcionamento, com cerca de 350 alunos matriculados no território, bem como três polos equipados com posto de saúde e condições para resgates rápidos, aéreos ou fluviais.
“O Curso de Gestão Territorial com beiradeiros da Terra do Meio tem por objetivo trazer conteúdos e linguagens importantes para a gestão do território e para o relacionamento com a sociedade envolvente”, explica Augusto Postigo, antropólogo do ISA e coordenador do curso.
“Ele se baseia em uma reflexão inicial sobre identidade, história do beiradão e contexto regional e nacional onde esse povo está inserido. Daí traz ferramentas e conteúdos úteis como mapeamento, legislação, pesquisa, monitoramento para alavancar o protagonismo dos beiradeiros nos processos que envolvem gestão territorial e conquista de direitos, diz.
Leis e mapeamento
Se os avanços são muitos e evidentes, os vetores de pressão sobre o território também têm se multiplicado, particularmente nos últimos anos. Diversas Terras Indígenas e Unidades de Conservação da região têm sido crescentemente invadidas, figurando no topo de índices de desmatamento.
Por isso, um dos principais temas da etapa de formação ocorrida no último mês de julho foi a importância de se dominar ferramentas de luta, que passam por identificar instâncias do Estado. “É fundamental conhecer quais são as leis, as regras, as normas que regem aquele território, e os direitos que têm a ver com o território”, explica Nurit Bensusan, uma das coordenadoras do curso. “E você também só pode entender isso se você entende minimamente o ordenamento jurídico do país, a forma com que ele opera. É fundamental saber disso para saber a quem se recorre quando você luta por direitos.”
A premissa de que não basta algo ser um direito previsto em lei para que ele automaticamente se concretize motivou também o trabalho com a temática do monitoramento territorial. Embora as Resex tenham coroado uma luta importante contra a grilagem e pelos direitos territoriais das famílias beiradeiras da Terra do Meio, a defesa desse território é um motivo de atenção permanente.
“Em março, falamos muito da importância da história. Nosso foco, do ponto de vista da arqueologia, era mostrar como havia uma forma de fazer uma história mais antiga, e como esse modo de vida poderia ser visto historicamente do ponto de vista da materialidade”, esclarece Vinicius Honorato, professor de arqueologia da Ufopa e um dos coordenadores do curso.
“Neste módulo, trabalhamos com o mapeamento nestas duas direções: primeiro, produzir informação com referências espaciais, depois, pensar na ferramenta mapeamento nas várias funções possíveis, defesa do território, embasamento de argumentações, entre outras.” As aulas incluíram, assim, desde o letramento em mapas até a instalação de aplicativos nos aparelhos celulares dos estudantes que permitissem a leitura e produção de informações georreferenciadas.
Intercâmbio com outros territórios
O segundo módulo deste último Curso de Gestão Territorial também contou com lideranças de comunidades tradicionais de outros territórios. Estiveram presentes três representantes caiçaras da região da Jureia, situada no litoral sul de São Paulo.
Dauro do Prado, Marcos do Prado e Daiane Neves partilharam com os jovens beiradeiros sua experiência de luta por seu território tradicional. “A história de luta e resistência dos caiçaras da Jureia traz um protagonismo permanente e busca estimular que cada comunidade assuma esse protagonismo também”, explica Dauro. “O intercâmbio valoriza os conhecimentos que os caiçaras já têm e podem trocar, e foi feito a partir do reconhecimento e identificação dos estudantes na nossa história de luta pelo território e modo de vida.”
Ao longo da história, os caiçaras da Jureia enfrentaram ameaças diversas, mas desde 1986 a principal vem do próprio governo, que ali criou a Estação Ecológica Jureia-Itatins e passou a cercear seu modo de vida – nos últimos anos, até demolindo as casas de duas jovens famílias, uma delas a de Marcos e Daiane. “Falar da nossa situação atual não é algo fácil”, diz Daiane, “mas fez com que os alunos compreendessem o quanto é importante a união, o engajamento contra qualquer forma de opressão e expulsão dos seus territórios”.
Para Marcos, a participação no curso contribuiu para verificar uma série de aproximações e contrastes entre as realidades. “São Resex, um tipo de UC que permite pessoas dentro, que têm uma realidade que a gente queria ter muito na Jureia, que é a proteção da floresta com o povo dentro, então foi muito importante pra gente ver como funciona”, afirma. “Além de transmitir toda a experiência que a gente tem na luta da Jureia aqui, o trabalho da gente do mapeamento, da criação de provas e fortalecimento da comunidade.”
As ferramentas de luta por direitos territoriais que os caiçaras da Jureia partilharam com beiradeiros da Terra do Meio foram de diversos tipos, desde a utilização de mapas até a ocupação de espaços como o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), que Dauro integrou até pouco tempo atrás.
“É importante entender que esse espaço foi criado a partir dos povos e comunidades tradicionais, e precisamos ocupá-lo”, afirma a liderança caiçara, destacando que há espaço para o pleito de entrada do segmento beiradeiro no conselho.
Liliane Santos da Silva, da localidade Triunfo, no Rio Iriri, contou ter gostado muito de tomar parte no curso, que pela primeira vez contou com estudantes que, como ela, vivem no interior da Estação Ecológica da Terra do Meio. “Foi um aprendizado. A gente pensava que era só a gente que vivia em uma estação ecológica, sob regras”, conta a jovem, destacando o quanto a conexão foi inspiradora para pensar um horizonte de mudança: “Se eles não desistiram há 30 anos, por que a gente tem que desistir agora?”.
Outro intercâmbio propiciado pelo curso foi com Francisco Firmino da Silva, mais conhecido como Chico Caititu, liderança beiradeira da comunidade de Montanha e Mangabal, no Alto Tapajós, município de Itaituba (PA). Há anos seu Chico Caititu se empenha na luta por direitos territoriais em sua região, também ameaçados por uma série de projetos de infraestrutura e invasões territoriais.
“O rio é uma mãe pra nós e a mata é um pai. Então eu acho esse curso muito importante para ensinar os jovens a lutarem para saber quais as ferramentas para lutar pelo nosso modo de vida, pelo nosso território”, ressalta seu Chico, que ficou satisfeito com a recepção dos estudantes. “Eles estão animados, tem deles que já estão aprendendo o caminho”.
Como essas ameaças atravessam fronteiras, a luta dos beiradeiros de Montanha e Mangabal se somou, nos últimos anos, à dos vizinhos do Povo Munduruku, em uma aliança manifesta em ações de defesa territorial, tanto no território indígena como no beiradeiro. Seu Chico tem tido papel destacado nesses processos de autodemarcação dos territórios – o que tem lhe rendido também ameaças de morte.
“Para mim, foi muito gratificante eles terem vindo e contado essas histórias para nós”, fala Selma Bezerra de Castro, do Riozinho do Anfrísio. “Para mim, esse curso serviu como exemplo para incentivar a gente, também. Eu fico pensando como tem coisas que a gente poderia ter que às vezes a gente não sabe por onde nem correr. Que um dia eu possa fazer a diferença e ajudar minha Resex, meu sonho é esse”, relata Maria Patrícia Correia Lima.
A participação das lideranças caiçaras e de seu Chico Caititu no Curso de Gestão se deu nos marcos do projeto de pesquisa "Comunidades tradicionais, conservação ambiental e políticas territoriais”, fruto de acordo de cooperação entre a Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp, projeto 2019-25507-7) e a Fapespa (Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas, projeto 072/2020).
O que é uma boa vida no beiradão?
Como já dito, um dos tópicos debatidos com os estudantes foram concepções do que seja uma boa vida no beiradão, juntamente com as formas de se monitorar essa qualidade de vida ao longo do tempo. Nesse sentido, Gabe Schwartzman, geógrafo que atualmente faz seu doutorado na Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, trabalhou ao longo desse segundo módulo com equipes dos alunos para criar uma pesquisa sobre qualidade de vida no beiradão. “Minha principal expectativa é que isso constitua um bom primeiro exercício de pesquisa”, afirma o jovem doutorando.
Schwartzman estruturou conjuntamente questionários e perguntas, e praticou com os estudantes a realização de entrevistas qualitativas. Até agosto deste ano, os jovens beiradeiros farão essa pesquisa em suas próprias comunidades, recebendo uma ajuda de custo. “Mais adiante, isso pode dar origem a uma pesquisa mais aprofundada sobre as razões pelas quais os jovens decidem permanecer ou deixar as Resex”, diz Schwartzman.
Além da aplicação dos questionários sobre qualidade de vida, estudantes do curso também farão monitoramento de alimentação e de atividades cotidianas. O objetivo é dar início a um monitoramento colaborativo que permita gerar séries históricas de dados para acompanhar se aquilo que os beiradeiros consideram uma boa vida está sendo alcançado.
O que vem aí
Esse Curso de Gestão de Territorial contará com ao menos mais quatro módulos, previstos para ocorrerem ao longo de 2023 e 2024. O ciclo de formação tem sido viabilizado com recursos da Darwin Initiative, organização ligada ao governo britânico, por meio do projeto “‘Somos a floresta’: Capacitação e serviços socioambientais dos beiradeiros da Terra do Meio, Amazônia”.
Este segundo módulo do curso contou também com apoio da Fundação Charles Stewart Mott. Outros coordenadores pedagógicos desta edição do curso de gestão territorial são Roberto Rezende, antropólogo do ISA, a ecóloga Raquel Rodrigues dos Santos e Bruna Rocha, arqueóloga e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).